quinta-feira, 27 de setembro de 2012

ÉTICA


ÉTICA

I – A LIBERDADE ENTRE A RAZÃO E OS INSTINTOS



1 – LIBERDADE E RAZÃO: SÓCRATES

“Conheça-te a ti mesmo” (Sócrates)

1.1 – Das trevas à luz: Platão e a alegoria da caverna

     Platão (427-347 a.C.) formulou uma história conhecida como alegoria da caverna. Nela, há algumas pessoas que estão lá desde crianças, amarradas pelas pernas e pelo pescoço, de costas para a entrada da caverna, impedidas de saírem dali. Da luz que vem de fora e que se projeta no fundo da caverna, estas pessoas vêem as sombras de outras pessoas que passavam carregando toda espécie de objetos fora da caverna, estes prisioneiros ainda ouvem o eco dos barulhos que vêm lá de fora, já que lá alguns caminham conversando com outros – os prisioneiros pensam, portanto, que a realidade é a sombra que vêem e o eco que ouvem.
     Estes prisioneiros faziam até concursos e concediam prêmios aos que distinguiam da melhor forma as sombras que eram observadas, aos que conseguiam primeiramente notar quais delas passavam e quais delas passavam acompanhadas de outras e, por fim, até de prever as próximas sombras que passariam.
     Se fossem libertados, os prisioneiros continuariam a pensar que as sombras eram, de fato, o que havia de real no mundo; porém, caminhariam para fora da caverna e teriam a vista ofuscada, pouco a pouco acostumar-se-iam com a luz e conseguiriam ver as imagens deles mesmos projetadas na água, veriam os próprios objetos, veriam a lua e as estrelas. Já acostumados, conseguiriam voltar os olhos ao sol e o veriam, compreendendo enfim que ele seria o autor das projeções que haviam no fundo da caverna.
    Ocorreu que um destes prisioneiros soltou-se e caminhou até a entrada da caverna, ele notou, então, que aquelas imagens vistas lá embaixo não passavam das sombras das coisas que estavam fora da caverna e que estas eram a realidade. Encantado com o que viu, ele retornou à caverna, já que sentiu enorme piedade dos seus companheiros de cárcere, contando tudo o que havia visto. Ele sentiu as trevas em seus olhos, já que havia se acostumado a olhar para a verdadeira luz, e tinha muita dificuldade em distinguir as sombras (seria preciso mais tempo para ele se acostumar com as trevas novamente). Os outros prisioneiros, então, consideraram que não valia à pena sair da caverna,  defenderam-se daquele que tentou tirar-lhes de lá e até o mataram.

     Para Platão, Sócrates (470-399 a.C.), seu grande mestre, foi quem viu a luz, quem retirou a alma da escuridão e a iluminou para, em seguida, retornar à caverna e dizer que tudo que ali havia não era real, mas sombra, ilusão. Viu o que cada sombra representava melhor que ninguém porque viu, também, a sua verdadeira forma fora da caverna e voltou para dizer aos prisioneiros qual era a essência daquilo que eles viam. O que fez Sócrates foi iluminar seu espírito com uma sabedoria que o retirou das trevas, vejamos como é possível alcançar a luz!

1.2 – “Conheça-te a ti mesmo:” Sócrates e o poder da razão.

    “Conheça-te a ti mesmo”: na entrada do templo de Apolo era esta a mensagem que estava escrita. Era esta a mensagem também que Sócrates aconselhava às pessoas: ele gostaria que elas saíssem da caverna, da escuridão que havia em seus espíritos. Para alcançarem a luz, seria necessário, segundo ele, buscá-la. Porém, aonde buscá-la? A resposta era imediata: dentro de nós mesmos – “conheça-te a ti mesmo”.
    Para que as pessoas conhecessem a si mesmas, Sócrates fazia perguntas: era um perguntador incansável, e até irritante. Dialogava com todos sobre os mais variados assuntos e faziam-nos perceber que o que elas sabiam sobre esses assuntos não passavam de sombras, aparências do que elas, de fato, eram. Com a continuidade do diálogo, Sócrates ajudava as pessoas a lembrar do que já sabiam, já que ele pensava que a sabedoria estava dentro de nós[1], não fora; por isso, aconselhava: “conheça-te a ti mesmo”.
     Conhecendo a nós mesmos, tomaríamos ciência que a nossa alma racional seria um fator decisivo para a nossa felicidade: agindo de acordo com a razão, agiríamos de acordo com nosso ser – agiríamos como homens, não como animais. Não seríamos dominados pelos mesmos impulsos irracionais que dominam os animais, não seríamos dominados pelas paixões e pelos sentidos, seríamos senhores de nós mesmos e não agiríamos de modo desregrado. Para agirmos como homens, temos de saber o que somos: se somos racionais, nossa conduta também precisa ser. “Conheça-te a ti mesmo”.
      Em suma, como procuramos o bem, tentamos nos afastar do mal: viver escravo dos prazeres é, para Sócrates, viver sem se saber o que se quer, é não-saber, é não usar a razão, é não agir como homem. Viver feliz e livre é viver senhor de nós mesmos, é saber o que se quer, é agir racionalmente, é procurar o bem para si mesmo. Eis o caminho para a liberdade na Filosofia socrática:

Conheça-te a ti mesmo:

-         Quem sabe (usa a razão) o que é o bem, pratica-o;
-         quem pratica o bem, é, realmente, um ser humano;
-         a liberdade reside na ação racional: é a razão que nos livra do vício e nos conduz à felicidade.
                                                 
    Sócrates (470-399 a.C.)

    Um exemplo: supondo que esteja muito calor e você foi a uma sorveteria, racionalmente se refresca com um sorvete e sabe que ele faz bem para você justamente porque lhe refresca. O que você fez foi um bem a si mesmo ao tomar um sorvete. E mais: libertou-se da sensação de calor. Porém, caso você aja desregradamente, tomando muitos sorvetes, o prazer transforma-se em um problema para o seu estômago. O que você fez foi um mal para si mesmo: ao deixar de usar a razão, deixou de agir como homem e tornou-se um escravo dos prazeres.
2 –  LIBERDADE E INSTINTOS: NIETZSCHE
“Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E  também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!” (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, 1885, 38 [12])
2.1 – Saber e fazer: uma diferença
    Sabemos que, para Sócrates, ao sabermos o que é o bem, o faremos. Porém, Friedrich Nietzsche (1844-1900) acreditava que este foi um grande erro de Sócrates e de Platão: quantas vezes agimos em sentido contrário a uma ação considerada correta? As pessoas sabem que não devem mentir, mas mentem. Sabem que não devem “furar fila”, mas furam. Sabem que devem ser polidas, mas não o são. O que Nietzsche apontou é que há uma diferença entre saber e fazer: podemos conhecer muito bem uma obrigação e, mesmo assim, desrespeitá-la. Por que agimos assim? Parece que há algo a mais em nós do que pretendia Sócrates, parece que a razão não é o suficiente para explicar a liberdade.
    Além da razão, há o corpo: nossos impulsos vitais, nossos instintos foram deixados de lado pela moral socrática. O “conheça-te a ti mesmo” de Sócrates foi um projeto falido, segundo Nietzsche, por não levar o corpo em conta, aquele que quis conhecer, não conheceu a si mesmo. Para Nietzsche, nossos impulsos são constituídos de forças que duelam em nós mesmos para prevalecerem uma às outras. Somos um conflito de forças que lutam entre si para sobreporem-se às outras.
    Sócrates errou, segundo Nietzsche, ao pensar que nossas ações são o resultado de uma empresa exclusivamente espiritual, cada ação movida por nós é o resultado de forças instintivas que lutam entre si e impulsionam o corpo. E não se trata apenas do corpo do homem, mas de algo que acontece em toda a natureza: em cada célula de cada ser vivo há esta luta, nem os seres microscópicos escapam destas forças. São forças que não param de duelar em um só momento e cada uma delas procura ser a mais potente – essa é a teoria nietzschiana da vontade de potência. Por isso, o filósofo pensou que não era possível explicar nossa conduta e nossa liberdade apenas por nossa razão, como desejou Sócrates. É preciso respeitar nossa natureza instintiva: “Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E  também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!”[2]
                                                Friedrich Nietzsche (1844-1900)

2.2 – Liberdade e impulsos: crítica da liberdade como dominação. Ou “como tornar-se o que se é”.
     Para Nietzsche, somos forças que buscam vontade de potência. Imagine agora que por muitas vezes reprimimos estas forças, que agimos contra nosso próprio ser. Foi isto que aconteceu na história da humanidade, segundo o filósofo, vejamos como.
     Para Nietzsche, há dois tipos de pessoas: as que são fortes como aves de rapina e as que são fracas como ovelhas. As aves de rapina também são chamadas de fortes, senhores, nobres e as ovelhas são chamadas de fracas, escravas, ressentidas. As aves de rapina têm força para realizarem aquilo que querem e, se tiverem o desejo de capturar ovelhas, elas conseguirão se impor, afinal são mais fortes. Já as ovelhas, para se defenderem, farão com que a força das aves de rapina não se manifeste, darão um “golpe de mestre”[3] e enganarão as aves de rapina com uma “fábrica de mentiras”[4]: a impotência passa a ser considerada virtude e bondade, a fraqueza passa a ser considerada mérito. As ovelhas fazem as aves de rapina acreditarem em um reino de Deus, onde seriam punidas caso efetivassem sua força.
    Como há dois tipos de pessoas, há dois tipos de moral: como os fortes dizem sim a si mesmos, vêem-se como bons, como fortes, e desprezam as ovelhas, já que são seres fracos, ruins. Já as ovelhas, dizem não a um outro, consideram-no mau e desejam vingança. Isto é, as ovelhas inverteram os valores e dominaram as aves de rapina com a moral socrática e com o cristianismo. Criaram o reino de Deus para punirem e vingarem-se dos que insistirem em efetivar suas forças, usaram a moral como forma de dominar as aves de rapina.
     As ovelhas dizem: “Você é uma ave de rapina, mas é livre para não usar sua força, é livre para não cometer o erro de agir de acordo com sua natureza, é livre para não ser uma ave de rapina. Caso nos devore, será punida no reino de Deus”! Isto é, pecamos, mas somos livres para expiar e pagar nossa culpa; desrespeitamos as normas, mas somos livres para pagarmos a dívida. A liberdade aparece como meio de submissão das aves de rapina às ovelhas, estas sustentam a crença de que “o forte é livre para ser fraco, e ave de rapina livre para ser ovelha”[5].  
AVES DE RAPINA
OVELHAS
Fortes, senhores, nobres.
Fracas, escravas, ressentidas.
Como são muito fortes, dizem sim a si mesmas.
Como são fracas, dizem não a um outro, a alguém que não são elas mesmas.
Consideram a si mesmos como boas e as outras como ruins. Inventaram o desprezo.
Consideram a si mesmas como boas e as outras como maus. Inventaram a vingança.
Acreditaram na fábrica de mentiras (moral) das ovelhas e foram dominadas por elas.
Inverteram a moral inventaram o reino de Deus para dominarem as aves de rapina.
     Como os fortes acreditaram, a conseqüência para a sua liberdade foi trágica: foram dominados por quem era mais fraco que eles e dominados por uma liberdade servil, isto é, uma liberdade de se aceitar o que não se é – os fortes escolhem não exercer sua força para não serem punidos no reino de Deus. Ao invés de agirem de acordo com seus instintos, os reprimem com a razão. O caminho que Nietzsche trilha para que as aves de rapina voltem a ser livres é somente um:
“Como tornar-se o que se é”[6]
-         Dizer não à moral, instrumento dos fracos para dominar os fortes;
-         que a ave de rapina seja ave de rapina;
-         a liberdade reside em não se deixar escravizar pela razão que os fracos impuseram aos fortes. A liberdade está nos impulsos vitais não reprimidos pela moral.
3 – À GUISA DE CONCLUSÃO: UM CONTO PARA NOSSA REFLEXÃO.
     Oscar Wilde (1856-1900), no conto O jovem rei, narra a história de um príncipe raptado com apenas oito dias de vida e que cresceu sob os cuidados de uma humilde família de camponeses. Como ele era o único filho que a filha do rei teve, era necessário encontrá-lo para que alguém sucedesse ao rei no dia em que este morresse.
    Enfim, este dia chegou e, um dia antes de sua coroação, o jovem rei teve um sonho:
    “Pensou que estava numa água-furtada, comprida e baixa, entre o ronrom e o barulho de um grande número de teares.
     A frouxa luz coava-se, furtivamente, pelas janelas fechadas com grades e deixava-lhes ver as silhuetas grosseiras dos tecelões, debruçados sobre os seus teares.
     Crianças pálidas e de aspecto doentio estavam acocoradas ao pé das enormes travessas.
     Quando as lançadeiras passavam como um relâmpago através da urdidura, levantavam pesados batentes e quando elas atingiam o final de seu movimento, deixavam recair os braços, que apertavam o fios, enlaçando-os juntos.
     As suas faces estavam minguadas pela fome.
     As suas mãos delgadas estavam agitadas e trêmulas.
     Mulheres de feições duras e olhos esgazeados estavam sentadas a uma mesa e cosiam.
     Um cheiro horrível enchia o local, O ambiente era impuro e pesado; as paredes estavam sulcadas de filetes úmidos. O jovem rei abeirou-se de um dos tecelões, parou um instante a olhar para ele.
     O tecelão lançou-lhe um olhar irritado e disse:
-         Por que me estás olhando? És um espião que nosso patrão enviou para junto de nós?
-         Quem é teu patrão? Perguntou o jovem monarca.
     Nosso patrão! Exclamou o tecelão com amargura. É um homem como eu. Para dizer a verdade, não existe a menor diferença entre nós, a não ser que ele usa bonitas roupas, enquanto eu visto trapos.
-         O país é livre, disse o jovem rei, e tu não és escravo de ninguém.
-         Na guerra, disse o tecelão, os fortes reduzem os fracos à escravidão e, em tempos de paz, é a mesma coisa. Temos de trabalhar para viver com salários tão miseráveis que morremos quase de fome. Os nossos filhos emagrecem prematuramente e as feições daqueles que amamos tornam-se duras e más. Esmagamos as uvas, mas são os outros que bebem o vinho. Semeamos o trigo, e a nossa arca está vazia, Arrastamos cadeias, embora os olhos as não vejam e somos escravos, se bem que nos chamem homens livres.
-         E isso dá-se com todos? Perguntou o jovem rei.
-         Assim é para todos, respondeu o tecelão, pra os novos como para os velhos, para as mulheres como para os homens, para as crianças assim como para aqueles que sucumbem todos os anos. Os comerciantes apertam-nos e temos de obedecer às suas ordens. Através das vielas sem sol, em que moramos, a Pobreza de olhos esfomeados e o Pecado de faces devastadas os seguem. A Miséria desperta-nos pela manhã até à noite, a Vergonha nos espreita. Mas que te importam essas coisas? Não és um de nós. No teu rosto, lê-se a felicidade.
E afastou-se com ar truculento; colocou a sua lançadeira entre os fios, e o jovem rei observou que a lançadeira estava guarnecida com fios de ouro.
     Um grande terror apoderou-se dele e disse ao tecelão:
-         Que vem a ser essa roupa que estás tecendo?
-         É a roupa destinada à coroação do jovem rei, replicou ele. Que te importa isso?
     E o rei moço soltou um grande grito, acordou e...
     Estava no seu aposento, e, através da janela, contemplou a vasta lua cor de mel, suspensa numa atmosfera cheia de brumas...”[7]

SUGESTÃO DE ATIVIDADES
A)    TEXTO COMPLEMENTAR
O problema de Sócrates
  “Dei a entender com o que Sócrates fascinava: ele parecia ser um médico, um salvador. É necessário indicar ainda o erro que havia em sua crença na ‘racionalidade a todo preço’? – é um auto-engano dos filósofos e moralistas pensar que já saem da décadence ao fazerem guerra contra ela. O sair está fora de sua força: mesmo aquilo que escolhem como remédio, como salvação, é apenas, outra vez, uma expressão de décadence – eles alteram sua expressão, não a eliminam propriamente. Sócrates foi um mal-entendido; a inteira moral-da-melhoria, também a cristã, foi um mal-entendido... A luz do dia mais crua, a racionalidade a todo preço, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, oferecendo resistência aos instintos era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença – e de modo nenhum um caminho de retorno à ‘virtude’, à ‘saúde’, à felicidade... Ter de combater os instintos – eis a fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica, felicidade é igual a instinto”.
NIETZSCHE, Friedrich. “Crepúsculo dos ídolos (§ 11)” in Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1° edição, 1974, p. 338.
B)    TRABALHO EM GRUPO

     Recolha imagens sobre pessoas usando sua razão e seus instintos vitais; em seguida, monte um painel expondo, de um lado, o conceito de liberdade de Sócrates com imagens que correspondam a este conceito. De outro, o conceito de liberdade de Nietzsche com imagens que correspondam a este conceito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BARRENECHEA, Miguel Ângelo. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2000.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2° edição, 2002.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Editora Moderna, 4° edição, 1996.
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche. Berlim: Walter de Gruyter, 1971.
NIETZSCHE. Friedrich. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2° edição, 2000.
_____. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____. Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1° edição, 1974.
PLATÃO. A República. Tradução de Leonel Vallandro, Porto Alegre: Editora Globo, 1964.

UNIDADE
I – LIBERDADE: ELA EXISTE?

Liberdade - essa palavra
Que o sonho humano alimenta
Que não há ninguém que explique,
E ninguém que não entenda!

Cecília Meireles. Romanceiro da Inconfidência.


1 – Determinismo


OS MITOS DE TÂNTALO, PÉLOPS E NÍOBE



Tântalo


     Tântalo era um rei rico e famoso em Sípilo, além de ser um dos filhos de Zeus; como tal, era amigo dos deuses e sempre era convidado a comer na mesa deles, no Olimpo. Porém, vaidoso, Tântalo revelou segredos dos deuses aos mortais, roubou o néctar e a ambrosia dos deuses e entregou-os a seus amigos mortais, escondeu um cão de ouro em Creta e, para testar a onisciência dos deuses, cometeu um crime terrível: matou seu próprio filho, Pélops, serviu sua carne na refeição e esperava que os deuses comessem a carne humana.
     Os deuses perceberam, ressuscitaram Pélops e castigaram Tântalo da seguinte forma: em um lago, ele ficou preso com o nível da água até o seu queixo, uma sede muito forte o incomodava, mas ao tentar beber a água, o nível dela abaixava e ele nunca conseguia bebê-la. Atrás de Tântalo, belíssimas árvores carregadas de frutas tinham galhos que chegavam sobre sua cabeça, quando ele movimentava-a para cima, um vento forte afastava os galhos cheios de frutas para longe, impossibilitando Tântalo de matar sua fome. Piorando seu sofrimento, ainda havia um rochedo suspenso no ar e localizado acima de sua cabeça, deixando-o com um terrível medo da morte.  
     Eis o destino de Tântalo por seu crime. Por mais que ele se esforçasse e tentasse em tomar água, esta afastava-se; por mais que ele se esforçasse em tentar comer as frutas, estas também se afastavam; por mais que ele tentasse esquecer do rochedo, ele estava bem acima de si. A sede, a fome e o medo sempre venciam – o destino mostrava-se imutável: era impossível alterar a decisão dos deuses olímpicos.


    A vida de Tântalo estava determinada, controlada pelos deuses. Em Filosofia, denominamos de determinismo a idéia de que somos controlados por algo ou alguém, a idéia de que temos um destino, de que ele seja inalterável e que possa estar escrito independentemente de nossa vontade. Tudo o que acontece conosco pode estar previamente definido.

Pélops


    Esta idéia de que nossa vida pode estar traçada anteriormente por algo ou alguém, é vista com mais clareza na continuidade do mito: Pélops era o filho de Tântalo, morto por seu pai e ressuscitado pelos deuses, ele apaixonou-se pela princesa Hipodâmia, de Elice. O rei Enômao ouvira de um oráculo que se sua filha se casasse, ele morreria. Para evitar o casamento de sua filha, o rei anunciava uma corrida de carruagem a todos os pretendentes dela: a corrida acontecia de Pisa até o altar de Poseidon, em Corinto, e enquanto os pretendentes largavam na frente, o rei oferecia um carneiro a Zeus. Se o rei alcançasse seu oponente, podia matá-lo com sua lança; caso contrário, o pretendente poderia casar-se com Hipodâmia – assim, muitos já haviam morrido, já que os cavalos do rei, Fila e Harpina, corriam mais velozmente que o vento Norte.
     Pélops era mais um concorrente e, antes da corrida, invocou Poseidon, que o atendeu e ofereceu a ele uma carruagem com cavalos alados e rápidos como flechas. Na corrida, mesmo com estes cavalos, Pélops foi alcançado por Enômao. Poseidon soltou as rodas da carruagem do rei, que caiu e morreu enquanto Pélops alcançava a linha de chegada em Corinto. De volta a Pisa, Pélops ainda salvou a princesa de um incêndio do castelo real e, enfim, casou-se com sua amada.

      Dizíamos que a idéia de determinismo aparece nesta narrativa mais claramente que na primeira. Basta verificar que a previsão oracular cumpriu-se com todo o seu rigor: como perdeu a corrida, o rei seria morto e, no momento que ele cai da carruagem, a morte apresentou-se fatalmente, tal como estava determinado. No derminismo, não há como alterar o destino imposto pelos deuses: uma vez que o destino do rei era a morte, caso sua filha se casasse, ela mostrou-se fatal, inexorável.

Níobe


    Níobe era orgulhosa como seu pai, Tântalo. Como rainha de Tebas, certa vez proibiu as pessoas de fazerem uma homenagem a Leto, Apolo e Ártemis alegando que ela é que deveria ser homenageada por ser filha de Tântalo, neta de Zeus e um de seus antepassados é Atlas. As oferendas foram interrompidas e todos voltaram para casa.
    Leto, a deusa do destino, e seus filhos, Apolo e Ártemis, reagiram aos insultos de Níobe e prepararam uma terrível vingança: Apolo acertou, com flechas, cada um dos sete filhos de Níobe, que faziam treinos eqüestres. A notícia se espalhou e Anfíon, rei de Tebas e marido de Níobe, ao saber da notícia, suicidou-se com sua espada. Níobe, acompanhada de suas sete filhas, correu para o campo lamentando a morte de seu marido e de seus filhos; porém, continuou a gritar contra os deuses e considerando-se mais rica. Assim, novas flechas voaram em Tebas e mataram também as suas sete filhas. Sentada diante de seus sete filhos, sete filhas e marido, todos mortos, Níobe ficou paralisada de tanta dor, o vento já não conseguia fazer seus cabelos oscilarem, o sangue petrificou em suas veias: Níobe foi transformada em uma rocha, mas que ainda continuava a chorar. Por fim, uma ventania jogou a pedra pelos ares e a levou até a Lídia, onde Níobe está até hoje em uma montanha, chorando. A deusa do destino vingou-se furiosamente do orgulho de Níobe e sua tentativa de interromper o louvor aos deuses.


Os três mitos acima expressaram algumas características fundamentais da idéia de determininsmo:
-         nossa vida é controlada por algo ou alguém, tal como Tântalo controlado pelos deuses no lago;
-         não há como alterar o nosso destino, tal como o rei Enômao que não escapou da morte assim que Pélops venceu a corrida de carruagem.                                                
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

  

2 – Liberdade segundo Sartre: a escolha
     Tântalo e Níobe ficaram impotentes diante dos castigos que receberam. Essa impotência de mudar a situação significa ausência de liberdade? Quando não conseguimos conquistar alguma coisa dizemos: “Não somos livres”. Em outras palavras, quando conseguimos sair da situação de impotência, quando vencemos as adversidades, declaramo-nos livres; porém, quando não as vencemos, declaramo-nos não-livres.
     Para pensar nesta questão, vejamos o que o filósofo francês Jean-Paul Sartre escreveu. Segundo ele, se estamos diante de um rochedo e este bloqueia nossa passagem, nós tentaremos passar por ele com uma série de técnicas, como a do alpinismo. Mesmo que não consigamos escalar o rochedo, fomos nós quem escolhemos pela escalada, foi a nossa liberdade que optou em ultrapassá-lo. O projeto era escalar, mas se não houve a realização da escalada, não deixamos de ser livres. O que Sartre apontou é que as pessoas não diferenciam o projeto da realização: o fato de não conseguirem escalar o rochedo não significa que não sejam livres, significa que são impotentes. Liberdade não é a obtenção do que se quer, o êxito de uma realização em nada importa para a liberdade.
    Suponhamos que você gostaria de ir à festa de aniversário de seu amigo, mas no caminho seu carro quebrou e você talvez não consiga chegar a tempo. O fato de você não conseguir realizar seu projeto (ir à festa) não significa que você não seja livre; significa, somente, que você não consegue vencer a uma adversidade. A liberdade manifesta-se na escolha que você realiza em ir à festa. Em seguida, você escolhe em consertar o carro, mas não sabe; escolhe em procurar um mecânico, mas não encontra. Isto é, escolhe em escapar da adversidade. A liberdade, segundo Sartre, é esta “autonomia de escolha”[8] que independe da realização do projeto: “Minha liberdade de escolher não deve ser confundida com minha liberdade de obter[9]. Isto é, como fazemos escolhas a todo momento, somos livres e estamos condenados à liberdade.


3 – Liberdade segundo Sartre: a situação, o ser e o nada


    O exemplo da festa de aniversário foi significativo: somos livres, mas nossa liberdade é exercida em meio a uma situação. O desejo é de chegar à festa; por isso que é doloroso ficar na rua com o carro quebrado, sem utensílios e sabedoria para consertá-lo, pensando na promessa que fiz a meu amigo de que estaria em seu aniversário, sem conseguir escapar do estado de coisas que me foi imposto pelos outros (um carro que não funciona).
    A situação, neste caso, é a condição de estar em um lugar que não é a festa, é o fato de conviver com o problema de não cumprir o que foi prometido no passado, de não dominar as técnicas (utensílios) que possibilitariam resolver o problema, de ver o estado de coisas criados por outros não resolver meus problemas. A liberdade não é abstrata, ela é concreta e a expressão de sua concretude é a situação – as escolhas que faço para resolver meus problemas são escolhas situadas, escolhas que têm como objetivo resolver problemas concretos.
    O que me faz falta é estar na festa e o meu objetivo, o meu projeto, o meu fim, é chegar a tempo nela. Minha liberdade consiste em fazer escolhas que me levem até a festa, que me tirem do lugar onde estou, com o carro quebrado: o que eu quero é trocar uma situação por outra, superar uma situação e chegar até outra, ir além de uma situação que me incomoda e realizar a que desejo, transcender a atual situação. Em outros termos, o que eu quero é acabar com a atual situação, nadificá-la. Minha escolha pretende colocar um ponto final em meus problemas, exterminá-los. Meu projeto é tornar existente minha presença na festa, torná-la real, enteficá-la, dar ser a ela.
    Sartre conseguiu mostrar que nossa liberdade se exerce em situação, nadificando ou enteficando realidades em nome de um projeto que queremos realizá-lo: no problema em questão, trata-se de nadificar a situação de ficar parado com o carro quebrado e dar ser a minha participação na festa – dar fim a uma situação e iniciar outra: “A liberdade, sendo escolha, é mudança”[10].



4 – Liberdade segundo Sartre: o problema da responsabilidade


    “A conseqüência essencial de nossas observações anteriores é a de que o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser”[11]. Tal é a conclusão de Sartre, vejamos como a liberdade desembocou no peso da responsabilidade sobre nós.
    Sabemos que a idéia de determinismo expressa o controle de nossas vidas por parte de algo ou alguém e a impossibilidade de mudarmos nosso destino. Sabemos também que Sartre recusou a idéia de determinismo e demonstrou que somos nós quem escolhemos nossas ações e, assim, tornamo-nos livres, controlamos nossas vidas e ganhamos a possibilidade de mudá-la. Essa liberdade, como vimos, é situada, condicionada por questões concretas e, ao procurarmos resolver os problemas para realizar nosso projeto, nadificamos uma realidade e tornamos real uma outra.
    Como escolhemos, realizamos projetos, acabamos com situações e criamos outras, somos nós os agentes de nossa história e da história da humanidade. Não há algo ou alguém movendo nossas vidas, não há determinismo: não há como responsabilizarmos os deuses por nossos acertos e por nossos erros. Somos nós os responsáveis pelas nossas vidas, já que somos nós que fazemos as escolhas. Se escolhemos em ir à festa, lutamos contra as adversidades e chegamos na mesma, somos os responsáveis por nossa participação; se escolhemos não ir à festa, somos os responsáveis por nossa ausência. A responsabilidade acompanha a liberdade e é inseparável dela.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão, Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

____. A idade da razão. Tradução de Sérgio Milliet, São Paulo: Abril cultural, 1981.

____. Sursis. Tradução de Sérgio Milliet, São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

____. Com a morte na alma. Tradução de Sérgio Milliet, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.

____. “Determinação e liberdade” in (vários autores) Moral e Sociedade. Tradução de Nice Rissione, Rio de Janeiro: Paz e Terra.

SCHWAB, Gustav. As mais belas histórias da Antigüidade Clássica Vol. 1. Tradução de Hildegard Herbold, Rio de Janeiro: Paz e terra,  1999.


[1]  A mãe de Sócrates era parteira e Sócrates também considerava-se um parteiro, mas de idéias: como ele acreditava que elas estavam nas próprias pessoas, sua atividade consistia em interrogá-las até que as idéias nascessem em suas mentes. Esta atividade genuinamente socrática ficou conhecida como maiêutica..
[2] NIETZSCHE, Friedrich. “Fragmento póstumo (1885, 38 [12])” in Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho,  1° edição, 1974,  p. 405.
[3] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 39.
[4] Op. Cit., p. 38.
[5] Op.cit, pp. 36-37.
[6] Este é o subtítulo do livro Ecce Homo, de Nietzsche.
[7] WILDE, Oscar. O jovem rei. Tradução de José Maria Machado, São Paulo: Clube do livro, 1963, páginas 14, 15 e 16.
[8] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão, Petrópolis: Vozes, 1997, p. 595.
[9] SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit, p. 621.
[10] SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 610.
[11] SARTRE, Jean-Paul. Op. cit., p. 678.

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