ÉTICA
I – A LIBERDADE ENTRE A RAZÃO E OS INSTINTOS
1 – LIBERDADE E RAZÃO:
SÓCRATES
“Conheça-te a ti mesmo”
(Sócrates)
1.1 – Das trevas à luz:
Platão e a alegoria da caverna
Platão (427-347 a.C.) formulou uma
história conhecida como alegoria da caverna. Nela, há algumas pessoas
que estão lá desde crianças, amarradas pelas pernas e pelo pescoço, de costas
para a entrada da caverna, impedidas de saírem dali. Da luz que vem de fora e
que se projeta no fundo da caverna, estas pessoas vêem as sombras de outras
pessoas que passavam carregando toda espécie de objetos fora da caverna, estes
prisioneiros ainda ouvem o eco dos barulhos que vêm lá de fora, já que lá
alguns caminham conversando com outros – os prisioneiros pensam, portanto, que
a realidade é a sombra que vêem e o eco que ouvem.
Estes prisioneiros faziam até concursos e
concediam prêmios aos que distinguiam da melhor forma as sombras que eram
observadas, aos que conseguiam primeiramente notar quais delas passavam e quais
delas passavam acompanhadas de outras e, por fim, até de prever as próximas
sombras que passariam.
Se fossem libertados, os prisioneiros
continuariam a pensar que as sombras eram, de fato, o que havia de real no
mundo; porém, caminhariam para fora da caverna e teriam a vista ofuscada, pouco
a pouco acostumar-se-iam com a luz e conseguiriam ver as imagens deles mesmos
projetadas na água, veriam os próprios objetos, veriam a lua e as estrelas. Já
acostumados, conseguiriam voltar os olhos ao sol e o veriam, compreendendo enfim
que ele seria o autor das projeções que haviam no fundo da caverna.
Ocorreu que um destes prisioneiros
soltou-se e caminhou até a entrada da caverna, ele notou, então, que aquelas
imagens vistas lá embaixo não passavam das sombras das coisas que estavam fora
da caverna e que estas eram a realidade. Encantado com o que viu, ele retornou
à caverna, já que sentiu enorme piedade dos seus companheiros de cárcere,
contando tudo o que havia visto. Ele sentiu as trevas em seus olhos, já que
havia se acostumado a olhar para a verdadeira luz, e tinha muita dificuldade em
distinguir as sombras (seria preciso mais tempo para ele se acostumar com as
trevas novamente). Os outros prisioneiros, então, consideraram que não valia à
pena sair da caverna, defenderam-se
daquele que tentou tirar-lhes de lá e até o mataram.
Para Platão, Sócrates (470-399 a.C.), seu grande mestre,
foi quem viu a luz, quem retirou a alma da escuridão e a iluminou para, em
seguida, retornar à caverna e dizer que tudo que ali havia não era real, mas
sombra, ilusão. Viu o que cada sombra representava melhor que ninguém porque
viu, também, a sua verdadeira forma fora da caverna e voltou para dizer aos
prisioneiros qual era a essência daquilo que eles viam. O que fez Sócrates foi
iluminar seu espírito com uma sabedoria que o retirou das trevas, vejamos como
é possível alcançar a luz!
1.2 – “Conheça-te a ti
mesmo:” Sócrates e o poder da razão.
“Conheça-te a ti mesmo”: na entrada
do templo de Apolo era esta a mensagem que estava escrita. Era esta a mensagem
também que Sócrates aconselhava às pessoas: ele gostaria que elas saíssem da
caverna, da escuridão que havia em seus espíritos. Para alcançarem a luz, seria
necessário, segundo ele, buscá-la. Porém, aonde buscá-la? A resposta era imediata:
dentro de nós mesmos – “conheça-te a ti mesmo”.
Para que as pessoas conhecessem a si
mesmas, Sócrates fazia perguntas: era um perguntador incansável, e até
irritante. Dialogava com todos sobre os mais variados assuntos e
faziam-nos perceber que o que elas sabiam sobre esses assuntos não passavam de
sombras, aparências do que elas, de fato, eram. Com a continuidade do diálogo,
Sócrates ajudava as pessoas a lembrar do que já sabiam, já que ele pensava que
a sabedoria estava dentro de nós,
não fora; por isso, aconselhava: “conheça-te a ti mesmo”.
Conhecendo a nós mesmos, tomaríamos
ciência que a nossa alma racional seria um fator decisivo para a nossa
felicidade: agindo de acordo com a razão, agiríamos de acordo com nosso ser –
agiríamos como homens, não como animais. Não seríamos dominados pelos mesmos
impulsos irracionais que dominam os animais, não seríamos dominados pelas
paixões e pelos sentidos, seríamos senhores de nós mesmos e não agiríamos de
modo desregrado. Para agirmos como homens, temos de saber o que somos: se somos
racionais, nossa conduta também precisa ser. “Conheça-te a ti mesmo”.
Em suma, como procuramos o bem, tentamos
nos afastar do mal: viver escravo dos prazeres é, para Sócrates, viver sem se
saber o que se quer, é não-saber, é não usar a razão, é não agir como homem.
Viver feliz e livre é viver senhor de nós mesmos, é saber o que se quer, é agir
racionalmente, é procurar o bem para si mesmo. Eis o caminho para a liberdade
na Filosofia socrática:
Conheça-te a ti mesmo:
-
Quem sabe (usa a
razão) o que é o bem, pratica-o;
-
quem pratica o bem, é,
realmente, um ser humano;
-
a liberdade reside na
ação racional: é a razão que nos livra do vício e nos conduz à
felicidade.
Sócrates (470-399 a.C.)
Um exemplo: supondo que esteja muito calor
e você foi a uma sorveteria, racionalmente se refresca com um sorvete e sabe
que ele faz bem para você justamente porque lhe refresca. O que você fez foi um
bem a si mesmo ao tomar um sorvete. E mais: libertou-se da sensação de calor.
Porém, caso você aja desregradamente, tomando muitos sorvetes, o prazer
transforma-se em um problema para o seu estômago. O que você fez foi um mal
para si mesmo: ao deixar de usar a razão, deixou de agir como homem e tornou-se
um escravo dos prazeres.
2 – LIBERDADE E INSTINTOS: NIETZSCHE
“Esse mundo é
a vontade de potência – e nada além disso! E
também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!”
(NIETZSCHE, Fragmento póstumo,
1885, 38 [12])
2.1 – Saber e
fazer: uma diferença
Sabemos que, para Sócrates, ao sabermos o
que é o bem, o faremos. Porém, Friedrich Nietzsche (1844-1900)
acreditava que este foi um grande erro de Sócrates e de Platão: quantas vezes
agimos em sentido contrário a uma ação considerada correta? As pessoas sabem
que não devem mentir, mas mentem. Sabem que não devem “furar fila”, mas
furam. Sabem que devem ser polidas, mas não o são. O que Nietzsche
apontou é que há uma diferença entre saber e fazer: podemos conhecer
muito bem uma obrigação e, mesmo assim, desrespeitá-la. Por que agimos assim?
Parece que há algo a mais em nós do que pretendia Sócrates, parece que a razão
não é o suficiente para explicar a liberdade.
Além da razão, há o corpo: nossos impulsos
vitais, nossos instintos foram deixados de lado pela moral socrática. O
“conheça-te a ti mesmo” de Sócrates foi um projeto falido, segundo Nietzsche,
por não levar o corpo em conta, aquele que quis conhecer, não conheceu a si
mesmo. Para Nietzsche, nossos impulsos são constituídos de forças que
duelam em nós mesmos para prevalecerem uma às outras. Somos um conflito de
forças que lutam entre si para sobreporem-se às outras.
Sócrates errou, segundo Nietzsche, ao
pensar que nossas ações são o resultado de uma empresa exclusivamente
espiritual, cada ação movida por nós é o resultado de forças instintivas
que lutam entre si e impulsionam o corpo. E não se trata apenas do corpo do
homem, mas de algo que acontece em toda a natureza: em cada célula de cada ser
vivo há esta luta, nem os seres microscópicos escapam destas forças. São forças
que não param de duelar em um só momento e cada uma delas procura ser a mais potente
– essa é a teoria nietzschiana da vontade de potência. Por isso, o
filósofo pensou que não era possível explicar nossa conduta e nossa liberdade
apenas por nossa razão, como desejou Sócrates. É preciso respeitar nossa
natureza instintiva: “Esse mundo é a vontade de potência – e nada além
disso! E também vós próprios sois essa
vontade de potência – e nada além disso!”
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
2.2 – Liberdade e
impulsos: crítica da liberdade como dominação. Ou “como tornar-se o que se é”.
Para Nietzsche, somos forças que buscam
vontade de potência. Imagine agora que por muitas vezes reprimimos estas
forças, que agimos contra nosso próprio ser. Foi isto que aconteceu na história
da humanidade, segundo o filósofo, vejamos como.
Para Nietzsche, há dois tipos de pessoas:
as que são fortes como aves de rapina e as que são fracas como ovelhas. As aves
de rapina também são chamadas de fortes, senhores, nobres e as ovelhas são
chamadas de fracas, escravas, ressentidas. As aves de rapina têm força para
realizarem aquilo que querem e, se tiverem o desejo de capturar ovelhas, elas
conseguirão se impor, afinal são mais fortes. Já as ovelhas, para se
defenderem, farão com que a força das aves de rapina não se manifeste, darão um
“golpe de mestre” e enganarão as aves de
rapina com uma “fábrica de mentiras”:
a impotência passa a ser considerada virtude e bondade, a fraqueza passa a ser
considerada mérito. As ovelhas fazem as aves de rapina acreditarem em um reino
de Deus, onde seriam punidas caso efetivassem sua força.
Como há dois tipos de pessoas, há dois
tipos de moral: como os fortes dizem sim a si mesmos, vêem-se como bons, como
fortes, e desprezam as ovelhas, já que são seres fracos, ruins. Já as ovelhas,
dizem não a um outro, consideram-no mau e desejam vingança. Isto é, as
ovelhas inverteram os valores e dominaram as aves de rapina com a
moral socrática e com o cristianismo. Criaram o reino de Deus para punirem e
vingarem-se dos que insistirem em efetivar suas forças, usaram a moral como
forma de dominar as aves de rapina.
As ovelhas dizem: “Você é uma ave de
rapina, mas é livre para não usar sua força, é livre para não cometer o erro de
agir de acordo com sua natureza, é livre para não ser uma ave de rapina. Caso
nos devore, será punida no reino de Deus”! Isto é, pecamos, mas somos livres
para expiar e pagar nossa culpa; desrespeitamos as normas, mas somos livres
para pagarmos a dívida. A liberdade aparece como meio de submissão das aves de
rapina às ovelhas, estas sustentam a crença de que “o forte é livre para ser
fraco, e ave de rapina livre para ser ovelha”.
AVES DE RAPINA
|
OVELHAS
|
Fortes,
senhores, nobres.
|
Fracas,
escravas, ressentidas.
|
Como são muito
fortes, dizem sim a si mesmas.
|
Como são
fracas, dizem não a um outro, a alguém que não são elas mesmas.
|
Consideram a si
mesmos como boas e as outras como ruins. Inventaram o desprezo.
|
Consideram a si
mesmas como boas e as outras como maus. Inventaram a vingança.
|
Acreditaram na
fábrica de mentiras (moral) das ovelhas e foram dominadas por elas.
|
Inverteram a
moral inventaram o reino de Deus para dominarem as aves de rapina.
|
Como os fortes acreditaram, a conseqüência
para a sua liberdade foi trágica: foram dominados por quem era mais fraco que
eles e dominados por uma liberdade servil, isto é, uma liberdade de se aceitar
o que não se é – os fortes escolhem não exercer sua força para não serem
punidos no reino de Deus. Ao invés de agirem de acordo com seus instintos, os
reprimem com a razão. O caminho que Nietzsche trilha para que as aves de rapina
voltem a ser livres é somente um:
“Como tornar-se o que se é”
-
Dizer não à moral,
instrumento dos fracos para dominar os fortes;
-
que a ave de rapina
seja ave de rapina;
-
a liberdade reside em
não se deixar escravizar pela razão que os fracos impuseram aos fortes. A
liberdade está nos impulsos vitais não reprimidos pela moral.
3 – À GUISA DE
CONCLUSÃO: UM CONTO PARA NOSSA REFLEXÃO.
Oscar Wilde (1856-1900), no conto O
jovem rei, narra a história de um príncipe raptado com apenas oito dias de
vida e que cresceu sob os cuidados de uma humilde família de camponeses. Como
ele era o único filho que a filha do rei teve, era necessário encontrá-lo para
que alguém sucedesse ao rei no dia em que este morresse.
Enfim, este dia chegou e, um dia antes de
sua coroação, o jovem rei teve um sonho:
“Pensou que estava numa água-furtada,
comprida e baixa, entre o ronrom e o barulho de um grande número de teares.
A frouxa luz coava-se, furtivamente, pelas
janelas fechadas com grades e deixava-lhes ver as silhuetas grosseiras dos
tecelões, debruçados sobre os seus teares.
Crianças pálidas e de aspecto doentio
estavam acocoradas ao pé das enormes travessas.
Quando as lançadeiras passavam como um
relâmpago através da urdidura, levantavam pesados batentes e quando elas
atingiam o final de seu movimento, deixavam recair os braços, que apertavam o
fios, enlaçando-os juntos.
As suas faces estavam minguadas pela fome.
As suas mãos delgadas estavam agitadas e
trêmulas.
Mulheres de feições duras e olhos
esgazeados estavam sentadas a uma mesa e cosiam.
Um cheiro horrível enchia o local, O
ambiente era impuro e pesado; as paredes estavam sulcadas de filetes úmidos. O
jovem rei abeirou-se de um dos tecelões, parou um instante a olhar para ele.
O tecelão lançou-lhe um olhar irritado e
disse:
-
Por que me estás
olhando? És um espião que nosso patrão enviou para junto de nós?
-
Quem é teu patrão?
Perguntou o jovem monarca.
Nosso patrão! Exclamou o tecelão com
amargura. É um homem como eu. Para dizer a verdade, não existe a menor
diferença entre nós, a não ser que ele usa bonitas roupas, enquanto eu visto
trapos.
-
O país é livre, disse o
jovem rei, e tu não és escravo de ninguém.
-
Na guerra, disse o
tecelão, os fortes reduzem os fracos à escravidão e, em tempos de paz, é a
mesma coisa. Temos de trabalhar para viver com salários tão miseráveis que
morremos quase de fome. Os nossos filhos emagrecem prematuramente e as feições
daqueles que amamos tornam-se duras e más. Esmagamos as uvas, mas são os outros
que bebem o vinho. Semeamos o trigo, e a nossa arca está vazia, Arrastamos
cadeias, embora os olhos as não vejam e somos escravos, se bem que nos chamem
homens livres.
-
E isso dá-se com todos?
Perguntou o jovem rei.
-
Assim é para todos,
respondeu o tecelão, pra os novos como para os velhos, para as mulheres como
para os homens, para as crianças assim como para aqueles que sucumbem todos os
anos. Os comerciantes apertam-nos e temos de obedecer às suas ordens. Através
das vielas sem sol, em que moramos, a Pobreza de olhos esfomeados e o Pecado de
faces devastadas os seguem. A Miséria desperta-nos pela manhã até à noite, a
Vergonha nos espreita. Mas que te importam essas coisas? Não és um de nós. No
teu rosto, lê-se a felicidade.
E
afastou-se com ar truculento; colocou a sua lançadeira entre os fios, e o jovem
rei observou que a lançadeira estava guarnecida com fios de ouro.
Um grande terror apoderou-se dele e disse
ao tecelão:
-
Que vem a ser essa
roupa que estás tecendo?
-
É a roupa destinada à
coroação do jovem rei, replicou ele. Que te importa isso?
E o rei moço soltou um grande grito,
acordou e...
Estava no seu aposento, e, através da
janela, contemplou a vasta lua cor de mel, suspensa numa atmosfera cheia de
brumas...”
SUGESTÃO DE
ATIVIDADES
A) TEXTO COMPLEMENTAR
O problema de Sócrates
“Dei a entender com o que Sócrates fascinava:
ele parecia ser um médico, um salvador. É necessário indicar ainda o erro que
havia em sua crença na ‘racionalidade a todo preço’? – é um auto-engano dos
filósofos e moralistas pensar que já saem da décadence ao fazerem guerra
contra ela. O sair está fora de sua força: mesmo aquilo que escolhem como
remédio, como salvação, é apenas, outra vez, uma expressão de décadence
– eles alteram sua expressão, não a eliminam propriamente. Sócrates foi
um mal-entendido; a inteira moral-da-melhoria, também a
cristã, foi um mal-entendido... A luz do dia mais crua, a racionalidade a
todo preço, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, oferecendo
resistência aos instintos era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença –
e de modo nenhum um caminho de retorno à ‘virtude’, à ‘saúde’, à felicidade... Ter
de combater os instintos – eis a fórmula para a décadence: enquanto a
vida se intensifica, felicidade é igual a instinto”.
NIETZSCHE,
Friedrich. “Crepúsculo dos ídolos (§ 11)” in Os Pensadores. Tradução de
Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1° edição, 1974, p. 338.
B) TRABALHO EM GRUPO
Recolha imagens sobre pessoas usando sua
razão e seus instintos vitais; em seguida, monte um painel expondo, de um lado,
o conceito de liberdade de Sócrates com imagens que correspondam a este
conceito. De outro, o conceito de liberdade de Nietzsche com imagens que
correspondam a este conceito.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BARRENECHEA,
Miguel Ângelo. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro: Viveiros de
Castro Editora, 2000.
CHAUÍ,
Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a
Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2° edição, 2002.
MARTON,
Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Editora
Moderna, 4° edição, 1996.
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche.
Berlim: Walter de Gruyter, 1971.
NIETZSCHE.
Friedrich. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro.
Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2° edição, 2000.
_____.
Genealogia da Moral: Uma Polêmica. Tradução de Paulo César de Souza, São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____.
Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo:
Abril Cultural, 1°
edição, 1974.
PLATÃO.
A República. Tradução de Leonel Vallandro, Porto Alegre: Editora Globo,
1964.
UNIDADE
I – LIBERDADE: ELA EXISTE?
Liberdade -
essa palavra
Que o sonho
humano alimenta
Que não há
ninguém que explique,
E ninguém
que não entenda!
Cecília
Meireles. Romanceiro da Inconfidência.
1
– Determinismo
OS MITOS DE
TÂNTALO, PÉLOPS E NÍOBE
Tântalo
Tântalo era um rei rico e famoso em
Sípilo, além de ser um dos filhos de Zeus; como tal, era amigo dos deuses e
sempre era convidado a comer na mesa deles, no Olimpo. Porém, vaidoso, Tântalo
revelou segredos dos deuses aos mortais, roubou o néctar e a ambrosia dos
deuses e entregou-os a seus amigos mortais, escondeu um cão de ouro em Creta e,
para testar a onisciência dos deuses, cometeu um crime terrível: matou seu
próprio filho, Pélops, serviu sua carne na refeição e esperava que os deuses
comessem a carne humana.
Os deuses perceberam, ressuscitaram Pélops
e castigaram Tântalo da seguinte forma: em um lago, ele ficou preso com o nível
da água até o seu queixo, uma sede muito forte o incomodava, mas ao tentar
beber a água, o nível dela abaixava e ele nunca conseguia bebê-la. Atrás de
Tântalo, belíssimas árvores carregadas de frutas tinham galhos que chegavam
sobre sua cabeça, quando ele movimentava-a para cima, um vento forte afastava
os galhos cheios de frutas para longe, impossibilitando Tântalo de matar sua
fome. Piorando seu sofrimento, ainda havia um rochedo suspenso no ar e
localizado acima de sua cabeça, deixando-o com um terrível medo da morte.
Eis o destino de Tântalo por seu
crime. Por mais que ele se esforçasse e tentasse em tomar água, esta
afastava-se; por mais que ele se esforçasse em tentar comer as frutas, estas
também se afastavam; por mais que ele tentasse esquecer do rochedo, ele estava
bem acima de si. A sede, a fome e o medo sempre venciam – o destino
mostrava-se imutável: era impossível alterar a decisão dos deuses olímpicos.
A vida de Tântalo estava determinada,
controlada pelos deuses. Em Filosofia, denominamos de determinismo a
idéia de que somos controlados por algo ou alguém, a idéia de que temos um
destino, de que ele seja inalterável e que possa estar escrito
independentemente de nossa vontade. Tudo o que acontece conosco pode estar
previamente definido.
Pélops
Esta idéia de que nossa vida pode estar
traçada anteriormente por algo ou alguém, é vista com mais clareza na
continuidade do mito: Pélops era o filho de Tântalo, morto por seu pai e
ressuscitado pelos deuses, ele apaixonou-se pela princesa Hipodâmia, de Elice.
O rei Enômao ouvira de um oráculo que se sua filha se casasse, ele morreria.
Para evitar o casamento de sua filha, o rei anunciava uma corrida de carruagem
a todos os pretendentes dela: a corrida acontecia de Pisa até o altar de Poseidon,
em Corinto, e enquanto os pretendentes largavam na frente, o rei oferecia um
carneiro a Zeus. Se o rei alcançasse seu oponente, podia matá-lo com sua lança;
caso contrário, o pretendente poderia casar-se com Hipodâmia – assim, muitos já
haviam morrido, já que os cavalos do rei, Fila e Harpina, corriam mais
velozmente que o vento Norte.
Pélops era mais um concorrente e, antes da
corrida, invocou Poseidon, que o atendeu e ofereceu a ele uma carruagem com
cavalos alados e rápidos como flechas. Na corrida, mesmo com estes cavalos,
Pélops foi alcançado por Enômao. Poseidon soltou as rodas da carruagem do rei,
que caiu e morreu enquanto Pélops alcançava a linha de chegada em Corinto. De volta a
Pisa, Pélops ainda salvou a princesa de um incêndio do castelo real e, enfim,
casou-se com sua amada.
Dizíamos que a idéia de determinismo
aparece nesta narrativa mais claramente que na primeira. Basta verificar que a
previsão oracular cumpriu-se com todo o seu rigor: como perdeu a corrida, o rei
seria morto e, no momento que ele cai da carruagem, a morte apresentou-se
fatalmente, tal como estava determinado. No derminismo, não há como
alterar o destino imposto pelos deuses: uma vez que o destino do rei era a
morte, caso sua filha se casasse, ela mostrou-se fatal, inexorável.
Níobe
Níobe era orgulhosa como seu pai, Tântalo.
Como rainha de Tebas, certa vez proibiu as pessoas de fazerem uma homenagem a
Leto, Apolo e Ártemis alegando que ela é que deveria ser homenageada por ser
filha de Tântalo, neta de Zeus e um de seus antepassados é Atlas. As oferendas
foram interrompidas e todos voltaram para casa.
Leto, a deusa do destino, e seus filhos,
Apolo e Ártemis, reagiram aos insultos de Níobe e prepararam uma terrível
vingança: Apolo acertou, com flechas, cada um dos sete filhos de Níobe, que
faziam treinos eqüestres. A notícia se espalhou e Anfíon, rei de Tebas e marido
de Níobe, ao saber da notícia, suicidou-se com sua espada. Níobe, acompanhada
de suas sete filhas, correu para o campo lamentando a morte de seu marido e de
seus filhos; porém, continuou a gritar contra os deuses e considerando-se mais
rica. Assim, novas flechas voaram em Tebas e mataram também as suas sete
filhas. Sentada diante de seus sete filhos, sete filhas e marido, todos mortos,
Níobe ficou paralisada de tanta dor, o vento já não conseguia fazer seus
cabelos oscilarem, o sangue petrificou em suas veias: Níobe foi transformada em
uma rocha, mas que ainda continuava a chorar. Por fim, uma ventania jogou a
pedra pelos ares e a levou até a Lídia, onde Níobe está até hoje em uma
montanha, chorando. A deusa do destino vingou-se furiosamente do orgulho de
Níobe e sua tentativa de interromper o louvor aos deuses.
Os três mitos acima expressaram algumas
características fundamentais da idéia de determininsmo:
-
nossa vida
é controlada por algo ou alguém,
tal como Tântalo controlado pelos deuses no lago;
-
não há como
alterar o nosso destino, tal
como o rei Enômao que não escapou da morte assim que Pélops venceu a corrida de
carruagem.
2
– Liberdade segundo Sartre: a escolha
Tântalo e Níobe ficaram impotentes diante
dos castigos que receberam. Essa impotência de mudar a situação significa
ausência de liberdade? Quando não conseguimos conquistar alguma coisa dizemos:
“Não somos livres”. Em outras palavras, quando conseguimos sair da situação de
impotência, quando vencemos as adversidades, declaramo-nos livres; porém, quando
não as vencemos, declaramo-nos não-livres.
Para pensar nesta questão, vejamos o que o
filósofo francês Jean-Paul Sartre escreveu. Segundo ele, se estamos diante de
um rochedo e este bloqueia nossa passagem, nós tentaremos passar por ele com uma
série de técnicas, como a do alpinismo. Mesmo que não consigamos escalar o
rochedo, fomos nós quem escolhemos pela escalada, foi a nossa liberdade
que optou em
ultrapassá-lo. O projeto era escalar, mas se não houve
a realização da escalada, não deixamos de ser livres. O que Sartre
apontou é que as pessoas não diferenciam o projeto da realização: o fato de não
conseguirem escalar o rochedo não significa que não sejam livres, significa que
são impotentes. Liberdade não é a obtenção do que se quer, o êxito de
uma realização em nada importa para a liberdade.
Suponhamos que você gostaria de ir à festa
de aniversário de seu amigo, mas no caminho seu carro quebrou e você talvez não
consiga chegar a tempo. O fato de você não conseguir realizar seu projeto (ir à
festa) não significa que você não seja livre; significa, somente, que você não
consegue vencer a uma adversidade. A liberdade manifesta-se na escolha
que você realiza em ir à festa. Em seguida, você escolhe em consertar o
carro, mas não sabe; escolhe em procurar um mecânico, mas não encontra.
Isto é, escolhe em escapar da adversidade. A liberdade, segundo Sartre,
é esta “autonomia de escolha”
que independe da realização do projeto: “Minha liberdade de escolher não
deve ser confundida com minha liberdade de obter”.
Isto é, como fazemos escolhas a todo momento, somos livres e estamos condenados
à liberdade.
3
– Liberdade segundo Sartre: a situação, o ser e o nada
O exemplo da festa de aniversário foi
significativo: somos livres, mas nossa liberdade é exercida em meio a uma situação.
O desejo é de chegar à festa; por isso que é doloroso ficar na rua com o carro
quebrado, sem utensílios e sabedoria para consertá-lo, pensando na promessa que
fiz a meu amigo de que estaria em seu aniversário, sem conseguir escapar do
estado de coisas que me foi imposto pelos outros (um carro que não funciona).
A situação, neste caso, é a condição
de estar em um lugar que não é a festa, é o fato de conviver com o
problema de não cumprir o que foi prometido no passado, de não dominar
as técnicas (utensílios) que possibilitariam resolver o problema, de ver
o estado de coisas criados por outros não resolver meus problemas. A
liberdade não é abstrata, ela é concreta e a expressão de sua concretude é a situação
– as escolhas que faço para resolver meus problemas são escolhas situadas,
escolhas que têm como objetivo resolver problemas concretos.
O que me faz falta é estar na festa e o meu
objetivo, o meu projeto, o meu fim, é chegar a tempo nela. Minha
liberdade consiste em fazer escolhas que me levem até a festa, que me tirem do
lugar onde estou, com o carro quebrado: o que eu quero é trocar uma situação
por outra, superar uma situação e chegar até outra, ir além de
uma situação que me incomoda e realizar a que desejo, transcender a
atual situação. Em outros termos, o que eu quero é acabar com a atual situação,
nadificá-la. Minha escolha pretende colocar um ponto final em meus
problemas, exterminá-los. Meu projeto é tornar existente minha presença na
festa, torná-la real, enteficá-la, dar ser a ela.
Sartre conseguiu mostrar que nossa
liberdade se exerce em situação, nadificando ou enteficando realidades em nome
de um projeto que queremos realizá-lo: no problema em questão, trata-se de nadificar
a situação de ficar parado com o carro quebrado e dar ser a minha
participação na festa – dar fim a uma situação e iniciar outra: “A liberdade,
sendo escolha, é mudança”.
4 – Liberdade segundo Sartre: o problema da
responsabilidade
“A
conseqüência essencial de nossas observações anteriores é a de que o homem,
estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é
responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser”.
Tal é a conclusão de Sartre, vejamos como a liberdade desembocou no peso da
responsabilidade sobre nós.
Sabemos que
a idéia de determinismo expressa o controle de nossas vidas por parte de algo
ou alguém e a impossibilidade de mudarmos nosso destino. Sabemos também que
Sartre recusou a idéia de determinismo e demonstrou que somos nós quem
escolhemos nossas ações e, assim, tornamo-nos livres, controlamos nossas vidas
e ganhamos a possibilidade de mudá-la. Essa liberdade, como vimos, é situada,
condicionada por questões concretas e, ao procurarmos resolver os problemas
para realizar nosso projeto, nadificamos uma realidade e tornamos real uma
outra.
Como
escolhemos, realizamos projetos, acabamos com situações e criamos outras, somos
nós os agentes de nossa história e da história da humanidade. Não há algo ou
alguém movendo nossas vidas, não há determinismo: não há como
responsabilizarmos os deuses por nossos acertos e por nossos erros. Somos nós
os responsáveis pelas nossas vidas, já que somos nós que fazemos as escolhas.
Se escolhemos em ir à festa, lutamos contra as adversidades e chegamos na
mesma, somos os responsáveis por nossa participação; se escolhemos não ir à
festa, somos os responsáveis por nossa ausência. A responsabilidade acompanha a
liberdade e é inseparável dela.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de
ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão, Petrópolis: Editora
Vozes, 1997.
____. A idade da razão. Tradução de Sérgio
Milliet, São Paulo: Abril cultural, 1981.
____. Sursis. Tradução de Sérgio Milliet, São
Paulo: Círculo do Livro, s/d.
____. Com a morte na alma. Tradução de Sérgio
Milliet, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.
____. “Determinação e liberdade” in (vários autores) Moral
e Sociedade. Tradução de Nice Rissione, Rio de Janeiro: Paz e Terra.
SCHWAB, Gustav. As mais belas histórias da
Antigüidade Clássica Vol. 1. Tradução de Hildegard Herbold, Rio de Janeiro:
Paz e terra, 1999.